O
filme Dogville retrata os acontecimentos em uma pequena cidade dos EUA, onde
aparentemente a vida é tranquila e pacata, até a chegada de uma estranha
chamada Grace que esta fugindo de um grupo de gângsteres. Em busca de um abrigo
ela encontra Tomas Edison, um morador do vilarejo que nutre sonhos de lançar um
livro sobre ilustrações a respeito da moral. O filme tem o seu desenrolar em um
grande palco sem paredes, somente com traços riscados no chão escrito com os
nomes das casas das pessoas. O filme se passa em nove atos donde o desenrolar
dramático é chocante e indigesto, porém, verdadeiro em sua nudez. Esta nudez se
revela no comportamento de uma comunidade que ao receber em seu centro Grace
(graça) representando o estranho, ameaça a coesão do lugar remexendo o
inconsciente e ao mesmo tempo a sombra das pessoas que depois de certo tempo começam
a se aproveitar de sua culpa em estar estragando o sossego do lugar com a
polícia a procurando sempre. Grace é uma jovem moça interpretada belamente por
Nicole Kidman, que o tempo todo tenta através de todos os meios possíveis
(desde engraxar o sapato da empregada da vila até servir de objeto sexual para
todos os homens do lugar que passam a estuprá-la todas as noites), agradar as
pessoas, ser cortes e mostrar uma moral imaculada, sempre no sentido de ser
aceita na comunidade, que de algum modo parece nunca aceitá-la.
Alguns
elementos no filme merecem destaque como o nome do único cachorro da vila,
Moisés que representa justamente o que falta a vila, a figura de uma real
autoridade, de um arquétipo do Grande Pai. O tempo todo tanto Moisés, quanto as
paredes das casas são riscadas no chão, mas não existem denotando uma total
ausência de separação entre interioridade e exterioridade. Aquele que deveria ser o líder, Tom, também é
carregado pela psicose de massa em que o mais importante é sempre ser igual à
imagem a qual todos sempre serviram-se
para nomeá-lo. E mesmo ao final do filme em que Tom vê seu futuro promissor
como um filósofo, manchado pela sua culpa revelada por Grace. Este (Tom) a
entrega aos gângsteres, demonstrando que no final, Dogville nunca se abriu para
o novo fazendo deste (Grace) um bode expiatório para todas as culpas não
assumidas pelos moradores. Tom, nunca fora fiel a sua filosofia de abertura
para o outro, já que nunca acolheu este outro, nucna houvera outro. Assim, este
personagem demonstra a realidade política social de pessoas que querem se
promover através da publicidade de bons atos, mas que na verdade, na intimidade
é justamente o contrário, a hipocrisia social. Assim, Moisés continua somente
em sua presença fantasmática como um latido no cenário, assim como as portas e
paredes mostrando que em uma sociedade em que não há diferenciação entre
interno e externo, público e privado, onde todos sabem a respeito de todos não
há como colocar ninguém para dentro já que não há um dentro. Dogville é o
exemplo de uma sociedade que fracassa, da ausência de um líder que por não
existir é escolhido como o mais fraco, o mais manipulável, este é Tom.
É
muito interessante o desenrolar da história que mostra o gângster chefe como o
pai da protagonista Grace. Ele quer apenas conversar com ela, apenas mostrar a
mesma sua arrogância em não reconhecer que as pessoas precisam de uma oportunidade
para confrontar seus erros, e isso só é possível através de outro que demonstra
esses erros, não precisando ser aceito por essas pessoas. Mas Grace demora a
conseguir digerir as palavras do pai, tanto quanto Dogville, Grace só legitimou
a lógica hipócrita daquele lugar, seu desapego abnegado, seu sacrifício e seu
perdão na verdade só perpetuava a mesma lógica, era um combustível para a
psicose coletiva de objetificação perversa do outro. A esperança de Grace em
ser aceita representada pelas luzes do cenário se transforma, para ela, em pura
ingenuidade quando a mesma aceita o conselho de seu pai de que não é errado se
abnegar ou ser bom, contanto que seja nos momentos certos. Assim, a figura do
Grande Pai para Grace consegue ascender à consciência, mas em um processo
compensatório, o encontro com o animus paterno de Grace a possui retirando sua
capacidade de decisão e reflexão, ela consegue diferenciar sua personalidade
aceitando sua origem como filha de um homem poderoso, mas ainda não consegue se
livrar da arrogância. Antes era a abnegada, solícita e bondosa, depois passa a
ser terrível e cheia de poder a ponto de
eliminar perversamente a todos.
Ainda
sim, há muita divergência com relação à Grace, ela consegue integrar sua sombra
(arrogância) matando todos na vila e extirpando a vila do mapa? Ou esse
movimento é nada mais do que um processo coletivo de enantiodromia*, onde esta
fora dominada pelo arquétipo sombrio do pai que era ausente naquela sociedade?
Dá o que pensar! De qualquer forma o que o filme nos dá a entender que Dogville
é na realidade um lugar simbólico que diz sobre uma dialética entre os opostos
psicológicos. Na medida em que Grace é tratada como um animal, um cão pelos
moradores da vila, este cão devora a própria vila em sua fúria. Assim como ao
não reconhecer o seu animus paterno, Grace se vê em um estado de ingenuidade
moral, compensa isso através de uma atitude extrema de utilização de seu poder
sendo o próprio martelo de condenação da vila. Não se sabe o porquê, o cão
desenhado no chão é o único sobrevivente, porém, continua preso e é abandonado.
Seria como se Grace abandonasse a real possibilidade de autodeterminação moral?
Significaria que a protagonista, assim como os moradores da vila, não se
atentaram para aquele que deveria ser o protagonista da consciência coletiva? O
cão Moisés? A lei representada por um cão encerra em si um paradoxo. Como um
cão que em sua natureza dócil e compassiva, um animal doméstico, pode representar
uma lei, já que não pune? O filme nos dá uma significativa lição do que
representa uma sociedade massificada em que o individual não é considerado,
forças se compensam e retornam ao seu lugar de origem nos dando uma sensação de
satisfação (como nos sentimos quando o filme acaba e Grace se vinga), mas o
indivíduo da mesma forma continua inexistente, Moisés ainda continua esquecido
e deixado para trás.
*Enantiodromia: “Passar para o outro oposto”, uma “lei”
psicológica pela primeira vez esboçada por Heráclito, significando que mais
cedo ou mais tarde, tudo se reverte para seu oposto. Jung identificava isso
como “o princípio que governa todos os ciclos da vida natural, desde o menor
até o maior” (CW6 parág. 708). (SHORTER, SAMUELS & PLAUT, 1988 http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/enantio.htm).
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