segunda-feira, agosto 20, 2012





Queer art



Corpos, imagens, luzes, sons... Toda a agitação permitida, todas as danças, os ritmos, as cores rememoravam o ano de 68, o movimento hippie e o Woodstock. Era a Parada do Orgulho Gay em Poços de Caldas e eu observava a celebração do amor livre entre todas as pessoas em um dia que parece haver apenas a proibição de proibir.
As paradas gay que ocorrem pelo mundo todo começaram com a primeira marcha de gays e lésbicas pelas ruas de São Francisco, após uma invasão ao bar Stonewall, largamente frequentado por gays na década de 70, com um álibi policial de contrabando de bebidas na época da lei seca norte-americana, diversos gays e lésbicas do local foram agredidos e presos. Indignados, articularam um movimento que daria origem as paradas gay, relembrando toda uma história de luta e de celebração a tolerância e ao amor livre. As conquistas juvenis dos anos de 68 e o discurso desse movimento estão inscrito nos corpos e nas cores vibrantes das paradas gay, na música gritante, nos beijos demorados pelas ruas das cidades onde ocorrem, nas drag queens bem montadas que reinam do alto dos trios. Quem não é visto não é lembrado, ao que me parece, e uma vez por ano milhões de pessoas marcham pelas ruas para serem vistas, lembradas.
Marcha do Orgulho Gay em Nova York, 1971
Atualmente no Brasil existem algumas políticas públicas municipais e estaduais afirmativas e pouquíssimas de nível nacional, como o programa Brasil sem homofobia, inaugurado em 2004 e que quase nunca é levado a sério. A intenção do Brasil sem homofobia era exatamente criar núcleos de instrução e discussão com toda a sociedade sobre a homossexualidade, expondo-a cada vez mais como uma condição natural e totalmente possível de vivência da sexualidade para que através da conscientização haja uma diminuição do preconceito.
Até pouco tempo achávamos que o Brasil era uma país de samba e carnaval, onde não existe pecado ao sul do Equador e todas as pessoas são aceitas e felizes, porém, o crescimento vertiginoso dos movimentos gays[1] trouxe a tona também a grande carga de preconceito que ainda está imbricado nos discursos recorrentes, sejam pedagógicos, religiosos ou médico-higienistas, existe sempre um trabalho da linguagem que lança a homossexualidade a invisibilidade e ao ilegítimo. Por esses motivos, e em protesto aos homossexuais que são assassinados em crimes comprovadamente de homofobia e outros que são violentados, espancados, agredidos verbalmente, demitidos de seus empregos por sua condição sexual, ocorre durante todo o ano em diferentes lugares do país, as paradas do orgulho gay.
Até o final do século XVII, a homossexualidade não existia como vemos hoje, mas ela toma seu tom, ocupa um papel e um lugar de discurso entre as sexualidades com o nascimento da psiquiatria e com a destra do conhecimento científico em detrimento do discurso religioso. Até então, ninguém precisava ser gay, não era preciso se orgulhar de nada. No momento em que ela se torna um problema de saúde e higiene física e mental, os homossexuais são convidados a se confessar, a confessar as suas práticas – essas pessoas ditas pederastas, masturbadoras, sodomitas – passam a ser classificadas como homossexuais e serem medidas e valoradas na sociedade por aquilo que fazem na cama e com quem fazem na cama. Surge então uma classe psiquiátrica, baseada em um desvio e um conceito vitoriano de moral: os homossexuais.
A arte queer são obras que reconstroem elementos da realidade
através da ideologia dos movimentos gay
Já no século XX, após o surgimento da psicanálise, da psicologia e da fenomenologia, posteriormente, com a ascensão dos movimentos feministas, os homossexuais assumem definitivamente sua posição no discurso das sexualidades e partem para a reivindicação de políticas igualitárias. É após os anos de 68 que os homossexuais são “convocados”, como dizia Harvey Milk em seus discursos políticos nos Estados Unidos, a serem gays. Todos são chamados a se orgulharem disso. Chegamos as paradas gay e a um movimento que precisa se orgulhar de ser gay para que não tenham sua liberdade cerceada, seus direitos castrados ou seus amores trancados nos armários. O orgulho gay representa um grande grito de pessoas que se sentem chamadas a lutar por um mundo de maior dignidade e respeito mútuo. Isso está na base ideológica do movimento gay.
Surge um outro termo: os assumidos, ou como dizem os norte-americanos, queers. Essas pessoas que frequentam os lugares gays, como as boates, bares e as paradas, comportam-se dentro de toda uma especialidade semiótica que abarca linguagens e signos próprios, que abraçam (ainda que inconscientemente) todas essas práticas sociais ligadas a homossexualidade serão sempre os assumidos, os que sairão do armário e sentem e vivem as dores e as delícias da vida fora do armário. Do outro lado, ficam os enrustidos, milhares de pessoas que preferem seus belos armários, que é a metáfora utilizada pra quem não se assume. Vivem suas relações as escuras, tentam se distanciar do universo gay ou mesmo o que faça menção a isso. Não são pintosas, como se refere no mundo gay a pessoas pertencentes a essa esfera de comportamentos ditos queer, mas se mantém no silêncio, muitas vezes em sofrimento, mais em prol de livrar-se do preconceito declarado, para não serem feridos ou porque simplesmente não admitem essa transição histórica que convida a vida privada a ser pública.

Nesse cartaz, a palavra estranho é lembrada em um jogo de
palavras. Queer, no sentido literal, quer dizer estranho
Nessa perspectiva, pensemos que as práticas homossexuais sempre existiram inscritas em nossa história, dos gregos com seus pupilos, cultos a Afrodite, ilha de Lesbos com suas bravas amazonas-amantes até o momento atual de casamentos gay e adoção por homossexuais, essas práticas devem permanecer, contudo, é recente o fenômeno da Homossexualidade, essa homossexualidade com H maiúsculo, esse gay, essa parada, esse universo de práticas discursivas e ideológicas que comportam o que é ser homossexual no século XXI e convidam a todos aqueles, que uma vez iniciados nas práticas homossexuais, se inscrevam nessa posição de discurso. Vejam, a homossexualidade acaba de ser inventada e já se depara com uma sociedade que se acua cada vez mais ao ver os seus valores morais sendo revisitados por um bando de bichas. Concordo, pra quem olhar de fora, deve ser assustador e por isso, as paradas precisam ser constantes. É preciso o beijo gay na novela, as meninas que andam de mãos dadas, os homens que não temem se abraçar em público para que a homossexualidade seja re-inventada, de um jeito que cada pessoa possa ser do jeito que quiser, amando a quem quiser. O amor livre torna-se amor fati e os territórios de heteros, bi e gays são substituídos por um lugar das relações, fora desses sítios ideológicos que se digladiam constantemente.
Sim, parece pretensiosa essa anarquia da sexualidade, porém me parece tão autêntica que são muitos os que se dão conta desse novo amanhecer e por isso inflamam seus discursos de ódio, intolerância e discriminação. Lembremos, que há menos de dois séculos os negros eram escravizados com naturalidade e hoje já podemos olhar para isso como uma grande barbárie. Espero que em breve as paradas Gay do Brasil sejam apenas uma grande festa que comemora a alforria dos que protestaram, a memória dos que morreram; que seja uma lembrança alegre de uma resposta dada ao vitorianismo, ao patriarcalismo burguês, até mesmo as estruturas capitalísticas do social através de uma ideologia construída, territorializada, significada com uma bandeira de arco-íris que insiste em vibrar ainda que em meio a uma grande tempestade.


[1] Principalmente a partir de 1975, conforme Edith Modesto na obra “Vidas em arco-íris: depoimentos sobre a homossexualidade.”

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