quarta-feira, dezembro 02, 2009




Os leitores conhecedores de Jung devem ter se perguntado do motivo pelo qual não abordei até agora o arquétipo do Self (Si-mesmo). Devo dizer que mesmo dando uma explicação didádica desse campo arquetípico da experiência humana, sinto-me muito despreparado, e inclusive acredito que Carl Gustav Jung foi um gênio ao tentar descrever tais experiências que geralmente gira em torno do totalmente desconhecido e transcendente, daquela experiência numinosa que nos transporta para o território do sagrado imanente/transcendente. Quando me vi na tentativa de descrevê-lo realizei várias leituras, e fui aos textos do próprio Jung (AION: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo), mas confesso que mesmo após ler essa definição os leitores irão sentir que não entenderam nada, ou que este conceito é deveras abstrato demais. É a atitude normal que geralmente se tem, é como tentar agarrar um pássaro em pleno vôo.
Começarei evidenciando que a maneira que Jung entendeu o Self é extremamente oposta ao conceito utilizado por Rogers e outros psicólogos contemporâneos, que identificam o Self com o ego, ou mesmo com a consciência. Diferentemente dessa idéia, Jung entendia o Self como a dimensão transcendente da psique, ou seja, compõe a consciência e também é a totalidade do inconsciente. Nesse sentido estamos sempre em busca daquilo que somos, ou que estamos caminhando para ser. É importante salientar que muitos não entenderam esse arquétipo de forma intelectual, já que para entendê-lo é necessário vivenciar a experiência da transcendência que em todas as culturas ganhou expressão nas imagens de Deus, Deuses, Santos, Espíritos ou até mesmo em “A Gaia Ciência” (Referência ao livro do filósofo Nietzsche). Portanto aquele que de início se estranhou com a idéia o convido a primeiro sentir a experiência do sagrado.
Pois bem, Jung começou a tecer o que viria a chamar de Si-mesmo quando se separou da Psicanálise de Freud e resolveu seguir o próprio caminho no mundo do conhecimento, logo, ele se viu sem a autoridade e proteção da figura de grande autoridade que Freud representava, ou deixara de representar na medida em que mostrou ser falho impregnando sua teoria com seus complexos e reduzindo a experiência humana apenas a dimensão primitiva postulada pelo conhecimento cientifico natural da época. Segundo Stein (2006, p. 138), Jung teve a primeira experiência do si-mesmo entre 1916 e 1918, quando descobriu que a psique se assenta sobre uma estrutura fundamental e de que essa estrutura é capaz de suportar os choques de abandono e traição que ameaçam desfazer a estabilidade mental e o equilíbrio emocional de uma pessoa. Ele chegou a essa conclusão após justamente ter vivenciado um período de desestabilização psíquica, quando se separou de Freud. Foi assim que Jung se implicou em sua auto-análise, e teve a coragem de embarcar na jornada ao mais profundo de seu inconsciente com o único intuito, o de desvelar a seu modo o que entendia como natureza humana. Foi a partir do momento em que reconhece que possuímos uma dimensão comum a toda humanidade (Inconsciente Coletivo) que Jung se interessa mais ainda pela história das culturas e costumes e através de suas viagens para a África, começa a identificar certos símbolos incomuns com nossa cultura, e daí sua idéia dos arquétipos e do inconsciente Coletivo toma mais consistência.
A partir de uma outra experiência que teve onde na sua casa em Küsnacht ouve o sino da porta tocar e se mexer sozinho, chamou a empregada e ela também viu assim descartou a hipótese de alucinação, Jung ouviu então as seguintes palavras espontaneamente: “Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que procuravam. Pediram-me guarida e imploraram que lhe falasse. Assim comecei a ensinar...”. Assim que resolveu dar livre curso a essas idéias escrevendo-as saiu o seguinte texto:
“Começo pelo nada. O nada equivale a plenitude. No infinito, cheio não é melhor que vazio. O nada é ao mesmo tempo vácuo e plenitude. Dele se pode dizer tudo o que se quiser; por exemplo que é branco ou preto,ou, ainda, que é ou não é. A esse nada ou plenitude dá-se o nome de PLEROMA” (STEIN, 2006, p. 140).

A partir dessas palavras ordenadas pelo seu inconsciente e que possuem origem gnóstica de 5000 a.C, Jung cunhou a idéia de Self. Para Jung tais palavras foram ditadas pelo que ele chamou de Basílides de Alexandria e veio da esfera arquetípica da psique. Tal escrito não foi intencional já que a forma de escrever não foi encontrada em nenhum texto Gnóstico. Foi a partir daí e de quando Jung começou a desenhar mandalas é que chegou a conclusão de que em períodos de crise e sofrimento da consciência o nosso inconsciente tem a tendência de nos reorganizar através de imagens de Deus, unificação e integridade, para obter a homeostase da psique. Segundo Stein (2006):

“... se um processo psiquico que se desenrola espontaneamente for seguido por seu próprio fim lógico, e se lhe for permitido expressar-se plenamente, o objetivo desse processo será cumprido, a saber, manifestar imagens universais de ordem em uma unidade” (p. 140).

Foi a partir de seu trabalho AION: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo (o significado do nome foi inspirado na antiga tradição mitraica onde AION é o nome de um deus que governa todo o calendário astrológico), que Jung coloca sua experiência em termos conceituais, dando uma série de exemplos simbólicos da Imago Dei (imagem de Deus), assim ele passeia por toda a simbologia de Cristo na história dos símbolos alquímicos, dos evangelhos Cátaros e pela concepção Gnóstica do símbolo do self. Assim, o self se manifesta em sua estrutura como imagens de círculos, quadrados e quaternidades, logo, se pararmos para perceber, a quaternidade está presente como instancia ordenadora do mundo nos quatro pontos cardeais, nos crucifixos, nas teorias dos temperamentos desde Galeno e Paracelso até hoje, e inclusive nos quatro elementos da natureza (Terra, Ar, Fogo e Água), os animais também são muito representados como personificações do self como o elefante, o cavalo, o touro, o urso, o peixe e a serpente, assim como o arquétipo dos múltiplos de 4 nos doze apóstolos, doze signos do zodíaco, nas doze horas do relógio etc. Jung na verdade atualiza um conhecimento de ordem muito antiga e pouco explorada ficando oculta aos olhos da maioria, não é a toa que ele encontra a maioria desses símbolos e formas de pensar em autores considerados ocultistas.
P.S: Engraçada foi a atitude de Freud em relação ao chamado conhecimento oculto (“Devemos remover a lama do ocultismo”), quando na verdade ele mesmo postulou sobre o oculto ao falar de inconsciente. Algo meio ambíguo!
Nessa obra Jung mostra todo o encadeamento de imagens, idéias e símbolos produzidos pelo cristianismo desde a antiguidade com os Gnósticos, perpassando toda a idade média com a igreja católica e com o conhecimento alquímico. Nesse sentido Jung postula que todos nós portamos a imagem do Grande Homem dentro de si, o Anthropos. E essa dimensão ganhou expressão em nossa cultura na imagem de Cristo. Assim, a trajetória de Cristo é vista simbolicamente como análoga ao caminho da individuação presente no inconsciente coletivo. O Que Jung queria comprovar em sua época não era a existência de Deus ou não, mas muito mais do que isso, a existência da imagem coletiva de Deus existente em todas as culturas e povos além do funcionamento psíquico deste. Assim Jung descobriu que o processo religioso acontece em todo ser humano independente de sua crença religiosa, assim a religião significaria o que a palavra mesmo diz, reli-gare o retorno do homem a sua dimensão mais originária. Nesse sentido Jung consegue comprovar ontologicamente que a religiosidade é uma outra dimensão do homem tão importante quanto à sexualidade, onde ambas estão interligadas de modo indireto, e não a sexualidade como determinante ou antagônica da religiosidade. Ao mesmo tempo Jung abala os alicerces dos religiosos de sua época que o criticaram, simplesmente porque postula que a Igreja e todo o sistema religioso até a modernidade perdera toda a dimensão espontânea dos símbolos que sempre brotaram na alma.
Identificando o inconsciente não apenas como o depositário de todas as experiências recalcadas como o queria Freud, Jung conseguiu com isso encontrar nas imagens do inconsciente, produtos simbólicos arquetípicos que tinham relação com a dimensão mais originária da humanidade, os mitos e lendas dos povos. Assim Jung descobre que o inconsciente é também o maior produtor de tudo o que a humanidade já criou, ou seja, o inconsciente passa a ser a fonte da vida e da criação artística e cultural. Senti a necessidade de voltar os olhos para a definição de inconsciente, já que isso diz muito do que Jung entendia por Self.
Assim, nós psicólogos entendemos que uma pessoa está passando por uma experiência de transformação a partir do encontro com a imagem do Self, quando em seus sonhos aparecem figuras grandiosas com um poder sobre humano e que possuem uma autoridade total, onde o ego não consegue ter o controle de si. Vozes vindas do céu e até mesmo estados psíquicos de comunhão com o cosmos e/ou com a natureza. Logo, o sonho não se torna um momento de realização de desejos inconscientes e nem somente como mantenedor do sono, mas pode significar uma vivência transpessoal única do encontro com o que temos de mais sagrado. Além disso, o grande sonho como Jung mesmo dizia, deve ser considerado como um mito pessoal, onde todos os símbolos dizem de nossa subjetividade, apontando um caminho virgem a ser seguido. Parece bem fácil teoricamente falando mas a coisa se torna mais complicada quando a vivencia do desconhecido bate a porta, como todo caminho virgem a ser percorrido possui inúmeros perigos, acabamos por ter a experiência angustiante e limítrofe do nada, onde em termos Gnósticos podemos chamar de Pleroma. Isso significa que os símbolos se não vivenciados e elaborados na consciência, se tornam simples imagens que passam a ser desperdiçadas.

2 comentários:

  1. Olá! Sou gaúcha e estudante de filosofia. Encontrei o blog de vcs e achei mto interessante. Interesso-me por psicologia analítica. Li algumas postagens no blog do Renato, assim como postagens no blog do Chris. Deste último blog, interessou-me a fenomenologia,pois o autor que escolhi para fazer minha mono, bebeu da fenomenologia, e tbm pq gosto de Clarice Lispector e F. Pessoa.

    Tá show o blog de vcs! Ou como se fala aqui nos pamapas: tá bueno barbaridade!!

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  2. Simplesmente maravilhoso o blog de vcs.
    Estava perdida com " Jung" o blog sanou minhas duvidas.
    Parabéns a vcs.continuem colaborando com a gente.
    Fiquem com Deus.

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